Crónicas de Jorge C Ferreira | Outros Namoros

Outros Namoros

O namoro, as velhas cartas, tudo guardado em caixas de lata com cadeado e atadas com uma fita, um cordel, com ou sem laço. As fotos, as namoradas já esquecidas, as que se fazem esquecer. As fotos que vão amarelecendo. O preto e branco e o sépia. Que coisas tão antigas! Dois bilhetes para uma estreia no velho Monumental. Um programa de uma peça que nunca mais se esquece. O teatro da nossa vida.

Ter autorização para ir a casa da namorada. Conhecer os pais. Os olhares de quem defende um tesouro. Muita pergunta por fazer. Outras prontamente respondidas. O emprego com futuro. A possibilidade de carreira. As habilitações. O estudo nocturno. Ser aceite. Uma visita muito suada. Mais um exame na vida. Mais uma provação ultrapassada.

A primeira noite em que saíram sós. As horas marcadas para entregar a namorada. Viver várias vidas naquelas horas. Aproveitar, saborear. Saber gostar. Sentir que são poucos olhos para olhar tanta beleza, ali, tão perto exposta. Porque a nossa namorada é sempre a mais bela! A mão dada no escuro. Um tremor que percorre o corpo. Um beijo dado à pressa. A vida a ficar aguada. O horário cumprido.

O primeiro beijo a sério. Roubado. Atrevido. Os olhos cerrados. Os corpos à beira do desfalecimento. Uma experiência que, para alguns, foi traumatizante. Conhecer o sabor do outro. Fazerem, por fim, parte inteira um do outro. Uma coisa que ninguém esquece. Um segredo inviolável. Só os que ficaram traumatizados o guardam num sítio de não ver, não sentir. Uma lógica defesa. Uma venda. Um faz de conta.

Os que foram para a guerra. Os que passaram a escrever em papel amarelo. As cartas do inferno. A gente de um tempo para esquecer. Toda a vida adiada. Tanto prometimento por cumprir. Os que voltaram diferentes. Os que voltaram cadáveres. Os namoros desfeitos. As promessas traídas. Os que casaram por correspondência. Algumas viúvas virgens. O luto pelo não consumado.  Os desejos traídos. Dele, muitas vezes, nem a aliança. Quanta vida destruída. Quanto sacrifício sem desobrigação. Um drama que nunca é demais contar.

Os que fugiram. Os que escolheram Paris, Londres, etc. Poucas namoradas os seguiram. Muito namoro desfeito com o absoluto segredo da fuga. A carta que era enviada depois. Algumas não chegavam. Fugir de tudo sem saber de nada. Um tiro no escuro. Procurar outra vida. Aprender a Liberdade e nunca mais a esquecer. Resistir e subsistir. Algum trabalho duro. A política. Os movimentos que mudaram a vida.

Os que ficaram. Aturar o Velho das Botas. Os que arriscaram quase a vida e viram chegar novas ideias. Ideias que nenhum ditador consegue proibir. Porque estão na nossa cabeça. Entranham-se em nós e connosco vivem.

O sexo antes do casamento. A experiência única. Coisa que nem sempre corria bem. Mais um segredo tremendo. Os cuidados. A grande revolução, as novas maneiras de viver. As mini-saias e as calças à boca de sino. A salvadora pílula. As casas dos amigos. As férias onde a liberdade ganhava outras asas. O sal e o mar. Os corpos tisnados. Poucos cremes. Muita vontade. Paixões e desamores. Os filmes ao ar livre. Um céu de todas as cores.

Afinal sei pouco sobre a arte do namoro, tantas são as vidas que nos ensinam a viver. Não tenho cartas nem fotos guardadas. Vozes que se vão perdendo enquanto a vida muda. Sei que havia uma arca velha no sótão da minha velha casa. Aí residia o meu espólio. Foi com a casa. Restam, sempre, as memórias. Até quando?

«Olha que tu, pelo que dizia a tua santa Mãe, devias ter sido fresco. Gostava de ter visto essa arca e que me tivesses lido essas cartas.»

Voz de Isaurinda.

«Não devias ver, nem ouvir nada de especial, cartas e fotos de uma juventude. Uma arca igual a tantas outras.»

Respondi.

«Está bem, como se eu acreditasse! Só vendo…»

De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Fev/2018(159)

 

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30 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Outros Namoros”

  1. Ouvi relatos destes de quem me antecedeu.
    E temos postais de namoro dos meus avós maternos emoldurados. Relíquias…
    Beijinho, amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. Outros tempos, A esmerada caligrafia. A ternura em tinta permanente. Abraço.

  2. Ana de Freitas

    O retrato de uma época, é verdade… mas fazia-se também muito ‘pela calada’!
    Detalhado flasback de um tempo irrepetível.
    Hoje, contado aos mais novos, acham inverosímil. Olham-nos meio de soslaio, como se estivéssemos a inventar.
    Que tempos esses, que tempos!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. Dizes bem, que tempos! O que tentábamos fazer para inventar guma Liberdade. Abraço

  3. maria fernanda morais aires gonçalves

    Vivemos a grande mudança dos tempos em pleno século vinte. Só comparado na história ao renascimento. Tudo mudou. Aqui, no nosso país a mudança foi mais lenta. Tínhamos um homem tacanho das ideias e um séquito que o rodeava que não deixava que as novidades cá entrassem com a velocidade com que assistíamos noutros países da europa. Mas nós fomos lá buscar a mudança e tu descreves tão bem!
    Sinto-me feliz por ter vivido esses tempos e claro, recordar o meu primeiro beijo! foi em Lisboa. 1964.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda, Sempre belas as tuas partilhas. 1964 foi o ano em que comecei a trabalhar, no dia 8 de Outubro. Vê lá como as coisas são. O que nós fazíamos para contrariar a ordem imposta! Abraço.

  4. Lénra Bispo

    Gostei de me rever nestas vivências que cheiram a passado longínquo mas não tanto assim. Afinal , muitos de nós o viveram e gostamos de recordar.
    Obrigada por isso, meu querido amigo. Bjs

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lenea. Tempos de um andar sibre brasas. A inquietudee. A ambição da liberdade. Abraço

  5. Ana Pais

    As suas palavras maravilhosas me fizeram viajar para um tempo cinzento politicamente , mas rico em sonhos. Cada palavra sua , cada lembrança. O namoro da adolescência , para mim foi mágico. Quase os primeiros a chegar à escola. Uma troca de olhares. Um sorriso envergonhado. Uma flor todos os dias colhida do jardim dele. O pedido de conhecer a família. O coração acelerado. As mãos tocando-se … Sensações que ficaram na memória. Obrigada, por mais uma bela crónica. Um abraço , querido Amigo .

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. Sim, um tempo danada, a falta de liberdade e nós a tentarmos reinventar a vida. Abraço

  6. Manuela Moniz

    Que deliciosa crónica, Jorge!
    Quantas lembranças com as quais tanto me identifico. O tempo do namoro, o deslumbramento da troca de olhares que nos fazia acelerar o coração. O toque, a troca de bilhetinhos, as cartas de amor, a flor recebida a secar entre 2 folhas de um livro… O risco que se corria, no primeiro beijo roubado e nos outros que se seguiam. Tantas e tantas regras que nos eram impostas e que, as enamoradas mais subversivas tentavam e algumas acabavam, com muito custo, a furar. A sociedade hipócrita a apontar-lhes o dedo.
    O sabor da paixão e do amor a sobrepôr-se.
    Hoje, sem querer ser saudosista, acho que se perdeu um pouco do encanto. Nós namorávamos, agora dizem: “andam com…”
    Não me tenho arca, mas guardo tudo na minha memória.
    Beijinho, querido amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Sinto cada palavra do que dizes. São palavras de respirar. Que enorme arca é a nossa memória. Abraço

  7. alcina batista

    Um reviver às nossas juventudes. Como é bom recordar tantas coisas por que passámos. Uma juventude sem igual, penso eu, como a dos nossos tempos!!! Fica a nostalgia

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Alcina. Muitos escolhos. Muitos muros para derrubar. Abraço

  8. Fernanda Luís

    A minha / nossa geração!
    Esgotei o meu léxico de adjetivos para qualificar a sua escrita e criatividade, pela positiva, claro.
    Fiquei maravilhada, soube tão bem lê-lo no final de um dia muito cansativo, esgotante…
    Primeiro a carta e agora a crónica.
    Só me ocorre muito obrigada.
    Abraço. Semana criativa.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Sabe tão bem ler o que escreveu. Um grande abraço.

  9. Idalina Pereira

    Memórias de juventude, dos amores, do fruto proibido…do antes de 74 e a “revolução” nos namoros.
    Não fez referência aos “slow”…
    Gostei desta visita ao baú.
    Boa semana, amigo. ?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. Não fiz referência a muitas coisas. Talvez o venha a fazer. Grato pelo seu comentário. Abraço

  10. Branca Maria Ruas

    Não trocaria a minha geração, nem a minha juventude, por outra, apesar de tudo… Tempos difíceis. País cinzento. Polícia de choque. Uns presos, outros partiam sem saber quando poderiam voltar. A guerra e as dolorosas despedidas. Mas vi chegar a Liberdade, embora muitos não a tenham sabido aproveitar. Acompanhei as mudanças, embora algumas mentalidades tacanhas continuem a existir. Vi o País mudar e ganhar Luz.
    Falas de vivências únicas, de experiências que me fazem pensar que fomos uns privilegiados por termos vivido a alegria de ver crescer os nossos filhos em Liberdade.
    Obrigada por esta crónica que vai muito para além de “outros namoros”.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Viver sem liberdade é uma indignidade. O que nós inventávamos para contrariar os bandalhos! Foram tempos intensos, mas doridos. Abraço

  11. Cristina Ferreira

    Uma crónica linda, emocionante, em que nos descreves de uma forma tão serena uma vida tão intensa, tão plena. A Isaurinda conhece-te bem, sabe que a tua sensibilidade permitiu desbravar o mundo em busca da liberdade . Esta tua liberdade em pensar, em escrever, permitindo-nos viajar para fora do nosso mundo de uma forma tão bela.
    Tal como a Isaurinda, eu também gostava que nos lesses essas cartas , mas todos nós, teus leitores, somos-te gratos por nos dares tanto de ti , através destas belíssimas crónicas . Com elas aprendemos, viajamos, deixando-nos num estado de perfeito enamoramento . Bem hajas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Emocionante é também ler o teu comentário. Sabe bem. Abraço

  12. Esmeralda Machado

    Gostei muito da sua crónica, revi-me em algumas lembranças do namoro. Obrigada querido amigo. Um abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. Fiquei feliz com o seu comentário. É sempre bom sentir este retorno. Abraço

  13. Ivone Teles

    Do que te foste lembrar, Os antigos namoros. Por aqui, Cidade de estudantes, muitos aproveitavam a liberdade das Repúblicas e de estarem longe das famílias. Principalmente, ou quase exclusivamente, raparigas, porque para os rapazes, tudo era permitido. A minha experiência, a das minhas irmãs e amigas era mais próxima realidade que expuseste. Já lá vai muito tempo. Nas férias grandes a troca de cartas. Falas da guerra e que tempo esse de cartas, as mais belas, as mais sofridas. Casamentos por procuração, as ” madrinhas de guerra “.
    O teu texto tão certeiro, tão cheio das verdades. Estou tentada a acreditar na Isaurinda e na tua mãe. Homem bonito, eu imagino. Sabes que considero a liberdade um bem, mas em relação aos namoros considero terem-perdido prazeres pequenos, mas com um valor imenso. Pequenos como o ” roçar de mãos ” que faziam saltar o coração do peito. Eu contava à Bea e ela ria-se, mas as descobertas, de “poucochinhas” enchiam corpo e alma.
    Aproveito, tiro o pano à Isaurinda e vou com ela., Beijo, grande amigo meu. Até logo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Sim, essa Cidade tinha um encanto especial em todos esses aspectos. Pedro e Inês, andaram por aí. As mãos ainda são, pelo menos para mim, de uma sedução única. Abraço

  14. Célia M Cavaco

    Tantas memórias,umas revi-me nalguma delas,outras parecem de um tempo diferente do meu.Quantos anos?Acho que não se pode contar as memórias pelo anos nem pelo tempo.São,serão, um espólio das nossas memórias sensoriais.Será somente isso,muito de nós num baú só nosso até um dia…
    Obrigada por mais um belo texto.Abraço meu amigo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Somos as memórias vibidas e as memórias contadas. Essa tão importante tradição oral. A vida a ficar cjeia. Abraço

  15. Madalena Pereira

    Tantas lembranças da juventude! Vive-se tanto em tão pouco! Gostei muito, querido amigo. Obrigada, um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Tudo o que vivemos ou tentámos viver. Tanta vida. Abraço

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